Com tendas de serviços para atendimento dessa população, almoços, shows musicais, apresentações artísticas e muitas mesas de debates, o festival vem mostrar que há muita produção cultural acontecendo nas ruas brasileiras e que há também muita gente em situação de vulnerabilidade querendo ocupar os espaços culturais do Brasil. O que eles precisam é de oportunidades.
Ferreira contou à reportagem da Agência Brasil que era casado e técnico em refrigeração, antes de passar a viver nas ruas do Rio de Janeiro por quatro anos. “Perdi tudo”, disse ele, que foi viciado em drogas e bebidas.
Sua vida passou a mudar quando voltou a estudar e passou a frequentar o coral Uma Só Voz, que se reúne semanalmente no Museu do Amanhã. “Cheguei no coral por meio de dois amigos. Eu dormia na rua, na calçada da Defensoria Pública. Aí eles me convidaram. Eu não tinha nada para fazer mesmo. Aí fui e gostei demais”. Hoje ele está internado em um centro de recuperação e trabalha em um mercado. Frequenta o coral e assiste aulas. No futuro, quer ser veterinário e cuidar de cachorros, uma de suas paixões.
Ricardo Branco de Vasconcellos, o Rico, é o regente e responsável pelo coral. Segundo ele, o grupo reúne pessoas em extrema vulnerabilidade ou que já tiveram essa experiência de viver em ruas. “Esse é um projeto que acredita que a arte pode fazer a diferença para a pessoa”, disse à Agência Brasil.
“A rua produz muita coisa sim. A rua produz pessoas solidárias, pessoas profissionais, artistas extraordinários, professores e potências estão ali. O que falta são festivais como esse. A realidade da rua é heterogênea. Mas, muitas vezes as políticas públicas não são pensadas para essa diversidade”, acrescentou ele.
Quem também se apresentou no festival foi o grupo Pagode na Lata, uma proposta cultural e educacional de redução de danos que atua na região da Cracolândia, em São Paulo. “O Pagode é uma construção coletiva de usuários, trabalhadores e ex-trabalhadores do território da Cracolândia”, disse Leonardo Lindolfo, assistente social e integrante do Pagode na Lata.
“Para além da redução de danos, focamos no viés da economia solidária. Hoje vamos tocar aqui no festival, mas tocamos também em outros lugares e vamos levantando uma grana. E o usuário que está no Pagode usa esse dinheiro para comprar uma bicicleta, para morar ou sair de uma situação de rua. E essa é uma vitória para a gente porque hoje, no Pagode na Lata, nenhum usuário está mais em situação de rua. Estamos olhando para outras estratégias, olhando para essa pessoa de forma integral e não só para o uso das substâncias. Há potências aqui na Cracolândia e a gente vai fomentando isso.”
“Com essa grana, vamos fazendo o projeto, conseguindo sobreviver e fazendo com que essas pessoas sejam vistas de outras formas. Tem pessoas aqui que tocavam samba há 30 anos na região da Santa Cecília e, por algum desencontro na vida ou desorganização, elas perderam esse vínculo. Com a ausência do Estado, que deveria fomentar isso, a sociedade civil se organiza e vai tentando promover essas ações de cultura e de arte e também virando uma economia solidária”, destacou.
Projetos como esses mostram que a cultura pode representar uma grande transformação na vida de uma pessoa. Como aconteceu com Darcy Costa, coordenador e secretário do Movimento Nacional da População de Rua.
“Vivi três anos em situação de rua. Fui usuário de crack por cinco anos. E o que me ajudou a me reorganizar e a mudar o meu foco foram justamente as oficinas de mosaico, de cultura e de desenho e os encontros de direitos humanos. Tudo isso me serviu como base e âncora para reorganizar minha cabeça e minha vida”, contou.
Hoje, ao palestrar durante o evento, Costa destacou que “a rua tem cultura”. E que essa capacidade precisa ser explorada.
“É possível sim a gente compreender essa cultura, esse potencial e a gente poder investir nisso, enxergando eles também como pessoas capazes de superar situações críticas. Com a ajuda das instituições de cultura, acredito que se torne muito mais possível. Precisamos de alimento, precisamos. Precisamos de locais para passar a noite. Mas precisamos de cultura, uma cultura transformadora e que permita que essas pessoas sejam integradas e participem da cidade com a cidade.”
Para Robson César Correia de Mendonça, do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, é preciso destacar que, além de produtores de cultura, as pessoas em situação de rua também querem viver a cidade. “A rua quer ser acolhida e quer participar das manifestações culturais, do teatro, da dança e de uma oficina de desenho”, disse ele. “Tem porta aberta para tudo. Só não há porta aberta na cultura, na moradia e no mercado de trabalho para essas pessoas”, rressaltou.
Portas fechadas escondem talentos. Como os amigos Flávio Alves da Silva, 31 anos, e Wesley Lucas da Silva, 22 anos.
Flávio vive nas ruas de São Paulo há 11 anos. A dependência química e os conflitos familiares o levaram a deixar a profissão de garçom, sua casa e uma possível carreira como cantor. “Eu já tive uma banda, sou cantor. Cantei na banda de uma igreja. Se tivesse oportunidade, eu voltaria [a cantar]”, falou ele.
Já Wesley, que vive nas ruas há cinco anos, era baterista. “Sou artista ainda. Sou baterista. Tinha 16 alunos e todos os sábados eu ensinava a tocar. Hoje em dia, não está fácil para ninguém. Artista sou desde que cresci. Já nasci com o dom. O que me falta é oportunidade. Falta todo mundo ver o que eu sou capaz de fazer. Faço qualquer tipo de música. Faço sozinho, ninguém me ensinou. Aprendi olhando.”
Enquanto as portas não se abrem para mostrar seus talentos, Wesley e Flávio aproveitaram o dia para curtir o festival. “Hoje é um dia de alegria, felicidade, amor e paixão. Estou sendo feliz em vir aqui. É bom distrair a mente, ver o povo sorrindo, a comida está maravilhosa”, disse Wesley.
“Estou aqui hoje participando da festa comendo, bebendo e sorrindo. Estou aqui comendo um tropeiro, com suco de laranja natural. E vou ver cultura, um pouquinho de cada coisa. Quero ouvir música”, completou Flávio.
Segundo Renata Motta, diretora-executiva do Museu da Língua Portuguesa, o festival surgiu com a ideia de dar visibilidade para essas pessoas e aproximá-las das instituições culturais que estão localizadas na região central de São Paulo.
“A ideia surgiu a partir do reconhecimento dessas duas instituições [o Museu da Língua Portuguesa e o Sesc Bom Retiro] da nossa inserção neste território de alta vulnerabilidade social e aqui estamos falando do Bom Retiro, Luz, Santa Ifigênia e Campos Elísios. Pensamos então em criar um festival que visibilize a população em situação de rua. É um festival totalmente desenvolvido de forma participativa, com protagonismo da população de rua por meio dos seus movimentos sociais, mas também de coletivos e organizações que atuam e tenham lideranças de população em situação de rua. O primeiro ponto é a questão da visibilidade e o segundo ponto é um chamado para que o campo da cultura, especialmente das instituições culturais que estão nesse território, possa pensar em novas estratégias para atuação com esses públicos em vulnerabilidade social.”
Segundo ela, o festival pretende discutir o direito à cultura, que é determinado pela Constituição Federal. “É muito importante pensarmos na cultura como um direito e a cultura como potência, e as ruas como esse lugar de pessoas que também fazem e devem usufruir de cultura.”